quinta-feira, 5 de setembro de 2013

No Elevador

No elevador


Relato de Carmem, mãe de Rubens


Carmem estava saindo para o trabalho, entrou no elevador e, logo adiante, o elevador parou  no andar abaixo. Uma outra moradora abriu a porta e ficou um pouco assustada por ter medo de que um rapaz mora lávisto lá alguma pessoa. Entrou no elevador e ficou um pouco mais calma dizendo para Carmem que era  nova moradora e que estava com medo daquele rapaz que mora lá em cima.
Carmem ficou meio agoniada sem saber o que dizer. Mas em seguida resolveu conversar com essa mulher. Perguntou se estava se incomodando com o Rubens, um rapaz alto que tem alguns problemas, às vezes não consegue falar muito bem. É meu filho.  A senhora se sentiu mal perto dele?
A nova moradora, constrangida,  disse que ficava com medo, sim, quando ele estava no elevador. E resolveu dizer seu nome, Rosa.
Carmem conversou um pouco mais com Rosa e explicou que ele tem algumas dificuldades mas geralmente há um jeito de resolver. Às vezes pode ficar irritado e chateado, mas depois melhora. Não precisa ficar com medo dele. Se não quiser falar com ele. Aliás, um dos problemas é que não gostam de olhar nos olhos dos outros e geralmente não olham direto nas pessoas que não são muito conhecidas.
Por outro lado, um dia descobri que um outro morador, brincalhão com todos no prédio, sempre que via o Rubens comprava para ele um picolé.
Rosa ficou mais tranqüila.
Meses depois Carmem me contou uma situação curiosa. Ela foi com Rubens para um Campeonato de Jogos Paratletismos. Contou que havia uma quantidade grande de competidores e um público acom-panhando essas pessoas. Todos fazendo o que podiam, com boas apresentações.
Houve um intervalo para o almoço e Carmem contou como aqueles jogadores ficavam conversando, contando histórias. Ela observou que muitos não tinham ou um braço ou perna vivendo ali sem mostrar qualquer incômodo, conversando entre eles, discutindo quem devia ter ganhado. Estavam ali como qualquer outros grupos que participam de jogos atléticos.
Carmem contou que se lembrou de Rosa, imaginando como seria bom ter visto tudo isso, essa gente atuando como podem e vibrando quando ganhavam e mesmo não ganhando.
Um outro tempo depois encontrei novamente Carmem que tinha encontrado muitas vezes naquelas pessoas envolvidas na história do elevador.
E me contou que tinha visto a Rosa e ficaram conversando. Não sobre o Rubens. Apenas no final, Rosa perguntou, onde está o meu amigão?
Carmem disse que geralmente vai muito bem.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Subindo a escada

Gilberto tem 19 anos. O meu consultório do ambulatório fica no 2º. andar, tendo uma escada. Gilberto subiu com a mãe, eu estava lá em cima, olhando-o subir. Percebi que Gilberto estava se apoiando no braço da mãe para subir a escada. Eu, lá em cima, disse com um jeito de brincadeira: “Você precisa se segurar na sua mãe? Não é possível!” Ele logo se soltou da mãe, deu um risinho e continuou subindo sem se apoiar, quando então vejo Clara, a mãe, indo segurar o braço dele para ajudá-lo a subir, o que evidentemente era desnecessário. 
Conversamos com Clara e Gilberto em vários atendimentos e pouco a pouco as  coisas foram se modificando.  A família mora em uma cidade de praia  e os pais têm  um bar na beira do mar.  
Os pais sugeriram a Gilberto ajudar os clientes do bar. Ele aceitou e passou a levar e trazer os pratos e copos. Os clientes davam gorjetas, o que deixou Gilberto muito contente. 
Gostou por conseguir aprender e também por ter contato com as pessoas que via conversando no bar e com ele. Ultimamente não tenho visto Gilberto precisando  se segurar na mãe para subir a escada.  Além disso, está começando a pedalar com a bicicleta que ganhou, justamente algo que necessita equilíbrio.

 A mãe de Gilberto tem um sentimento de fragilidade bastante intenso diante do filho. É algo muito comum. As mãe querem muitas vezes ajudar e apoiar mas não percebem muitas capacidades do filho com a SXF. A mãe suficientemente boa (conceito de Winnicott) atua com o filho cuidando, brincando, estando com ele, mas ela não faz tudo que é solicitada. Isto é necessário para o filho se desenvolver.
Quando a mãe estimula  o filho, está fazendo com que ele conheça um pouco de si, dos outros e do mundo.


*Os nomes neste caso são fictícios.







domingo, 5 de maio de 2013

Viagem a Goiás

Clara conta a viagem com Henrique:

Esta foi a primeira viagem sem o pai; o  casamento acabou e ficamos nós dois. Já havia passado uns seis meses, sabia que seria  realmente diferente. Mas pensamos que podia ser uma boa  viagem, Henrique estava animado. Sempre adorou viajar, ver novas cidades.  Havia uma esperança de podermos ter momentos agradáveis, mesmo assim, e recuperar momentos bons.  

Era uma excursão de ônibus, foi assim que escolhi, não teria preocupação com os trajetos, não tínhamos que procurar lugares para se hospedar e fazer refeições. Ficava mais fácil, menos coisas para fazer.

 Na entrada, como sempre nessas excursões de ônibus, a guia começou a chamar na entrada do ônibus, cada um  se apresentando. O microfone passava de mão em mão e ele dava um jeito de evitar.

 Ficava diante de um impasse, embora gostasse de falar de microfone. Envergonhado, ia deixando passar os outros. No fim, se apresentou, falou seu nome, disse que era botafoguense, que está gostando da viagem e foi quase correndo para se sentar.

O primeiro dia foi ótimo, lugares bonitos, nenhum problema. Chegamos ao hotel. No outro dia, tomamos o café e seguimos a viagem . Um pouco antes de sairmos, Henrique me pediu para consertar o relógio. Não consegui consertar,não sabia como fazer para o relógio funcionar, justamente com o relógio que é tão importante para ele. Disse-lhe que ia procurar um lugar para consertar. Ele foi ficando agoniado. E quando isso acontece, eu começo a ficar também aflita, imaginando que a coisa vai piorar por não saber o que fazer. Percebi como fazia falta a presença do pai. Tentei acalmá-lo sozinha. Ficou um pouco melhor, descansamos por um período. Um tempo depois começou a me pedir para ver o relógio. Fiquei novamente  com  medo. Novamente outra trégua. Até que chegamos ao hotel onde iríamos comer. Henrique saiu correndo, irritado, talvez por causa do  relógio e disparando para entrar no refeitório longe de mim. Fui atrás e lá estava ele com um prato já bem cheio de arroz e batata frita. Tentei dizer que tinha batata demais e que devia colocar outras coisas, uma carne. O vaso transbordou:, começou a gritar, pegou meu cabelo e começou a me puxar. Todas as pessoas da excursão ficaram  paralisados.

 Em certo momento, depois de alguns segundos, um senhor que estava na excursão foi em direção a Henrique e interveio, começando a falar com ele, com o dedo diante dele. E falou alto: “Você não pode fazer isso! Ela é sua mãe. Você não pode fazer isso!”

Henrique  largou imediatamente  o meu cabelo e foi correndo, saindo para um lugar qualquer, tentando se esconder. Foi parar em um banheiro e ficou fechado lá dentro. Percebi que queria se recompor. Um pouco depois fui falar com ele, disse para ficar onde quisesse, procurasse um lugar com uma televisão até se sentir melhor e que iria daí um pouco fazer um prato para ele. Depois encontrei uma pequena sala para ele se tranqüilizar e comer.

Voltei para o restaurante e vi pessoas comentando. Conversei e agradeci o senhor que colocou o Henrique na linha, mas ao mesmo tempo ouvi um outro, dizendo que esse menino deveria estar em um manicômio, tomando remédios, não na excursão. Dirigi-me a ele e disse que não é bem assim. Às vezes as coisas não são como queremos. Quase disse a ele que já deve ter passado por algo parecido. Mas só disse que não era nada disso. Que, em vez de ele tomar  remédio, talvez fosse  melhor se eu tivesse tomado uma caipirinha. Provavelmente tudo isso não teria acontecido. E fui embora.

A viagem continuou, Henrique ficou tranqüilo, não falou mais sobre o relógio, estávamos mais calmos, eu  e ele. Ficamos  bem e fomos em frente.

No dia seguinte, houve nova brincadeira de microfone.  E  Henrique quis falar. Pegou o microfone e começou:

“Estou gostando muito dessa viagem, gostei de vocês, tudo muito bonito, desculpem o que fiz ontem  e quero fazer outras viagens assim”.

Muitos aplaudiram.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Perdas e encontros 1

Eliana conta sua história  e de Antonio

Domingo, Rio de Janeiro, dia ensolarado, muitas pistas da orla fechadas para as pessoas caminharem. Saímos de manhã, eu e Antonio, ainda com um vento leve e fomos andando na pista da Vieira Souto para prosseguir na direção da Delfim Moreira. Queríamos (eu certamente)  passear por esses lugares bonitos, o Rio, Ipanema, Leblon. Ainda era cedo quando chegamos, foi fácil estacionar o carro na própria praia. Com o sol e a brisa íamos andando até que em um momento não vi  mais meu filho. Olhava para lá, olhava para cá. Nada.

Fiquei em pânico. A sensação é muito estranha, uma espécie de nuvem que impede ver qualquer coisa, sem saber para onde ir, o que fazer sem ter ninguém para ajudar. Pensei no salvavida, não encontrei.

Um casal muito amistoso se dispôs a me ajudar, disseram que iriam procurar. Falei que ele é alto, tem quinze anos, estava com uma bermuda preta, uma camiseta branca, que não eram um  grande destaque. Dei o número do meu celular se houvesse notícia.
Mesmo com o apoio continuava desesperada. Queria gritar, talvez para fazer qualquer coisa possível. Uns minutos depois, andando para lá e para cá , dando voltas nos trajetos e na cabeça, vi um amigo que conhecia Antonio e pedi para procurar também. Tentou mesmo me  ajudar,  também  não adiantou. Ligou pelo telefone  um tempo depois dizendo que não havia encontrado.

Continuei andando um pouco no sentido do Leblon e depois voltando para Ipanema, até que tive uma idéia, procurar no carro. Como se fosse a última chance, fui para o lugar do estacionamento, descrente mas pelo menos tendo algo diferente que me desse uma esperança. Não foi fácil,  a agonia não permitia pensar com calma também para encontrar o carro. Sabia que  estava longe, meu coração continuava batendo muito forte, as pernas meio bambas, queria correr, voar, não conseguia.

Finalmente encontrei o carro e quando cheguei,  ali estava:  Henrique, tranquilo, encostado no carro com braços cruzados, me esperando.

Fiquei perplexa. E aliviada.

Passados a angústia e o alívio, comecei a pensar. Na verdade, fiquei muito impressionada por ele ter tido a iniciativa, muito mais rápida do que eu. Além disso, as dificuldades existentes  fazem com que não se observe capacidades inesperadas. O interessante foi  descobrir saber muito mais do que eu pensava e verificar que Antonio pode se orientar, o que abre literalmente mais caminhos.

Nota: 1) Os nomes dos personagens são fictícios.
         2) Uma das características da maioria das pessoas com a síndrome é uma atenção diante de referências: gostam de relógios, calendários, agendas e, principalmente, os trajetos das ruas por onde andam. 

sábado, 27 de outubro de 2012

Abrindo portas

Já faz muitos anos,  trabalhava em um ambulatório público e recebi um rapaz de 18 anos. Uma grande coincidência. Por muito tempo tive intensa convivência com pessoas de diversas idades através de ligações pessoais e familiares, que tinham passado por dificuldades na escola,  não acompanhavam as aulas, eram inquietos. Eles se  pareciam com o rapaz que atendi naquele dia.

Como familiar e médica, desde que os conheci,  evidentemente  me interessei por eles. Mas, tanto eu quanto muitos outros demoramos para saber que  tinham a Síndrome do X frágil. Pouco depois de eu tomar conhecimento  dessa síndrome, vejo o tal rapaz desconhecido de  18 anos. O pai se apresenta primeiro e, em seguida,  Fernando - este era seu nome -  entra com a cabeça baixa. O pai lhe diz para me cumprimentar. Fernando estica o braço em minha direção e, ao mesmo tempo, vira o rosto para trás. Não queria me olhar. Ou não poderia. Talvez por enquanto.

Essa mirada me impressionou mesmo estando habituada a ver  tantos outros, esses outros que se escondiam de olhares diretos. E assim conheci o primeiro paciente com a síndrome. Fiz algumas perguntas ao pai de Fernando: quando sentou? – 9 meses - ; quando andou ?– 1 ano e 4 meses – ;  falou ?– com mais de 2 anos, perguntas e respostas semelhantes que iria escutar adiante, quase como uma repetição. Encaminhei para o exame, o resultado foi positivo.

Assim entrei nesse universo. Um  jornal publicou uma matéria sobre a Síndrome do X frágil onde dizia a respeito da síndrome e dos exames diagnósticos que poderiam fazer. Isto foi pouco antes de  eu conhecer Fernando e seu pai. Apoiada por pediatra, geneticista, psicopedagogos  pude, junto com outros, abrir  várias portas. Dos  congressos, da permissão de falar alto sabendo em parte do que se trata, tendo então  um diagnóstico específico para  meninos, meninas, adolescentes que têm incômodo ao olhar, aos barulhos fortes, o andar que se atrasa, as palavras que  demoram. Ter saber o diagnóstico dá contornos, produzindo identidade. Finalmente ganham um nome, algo que dá uma conformação para  limites e possibilidades.

Há mais de doze anos comecei a atender essas pessoas e seus  familiares com a síndrome. Nesse período aprendi muito, ouvi muitas histórias, vividas por mim e por outros. Percebi que essas histórias e personagens  poderiam auxiliar as pessoas com a síndrome e suas famílias. Assim, resolvi trazer aqui partes do que acompanhei  nesse período, vividas por mim e relatadas por outros,  com o objetivo de compreender a síndrome, obter conquistas  e soluções para os impasses que se apresentam. 

Notas: 1) Os  nomes dos personagens serão sempre  fictícios.
            2) Uma das características mais frequente nas pessoas com a SXF é o rechaço ao olhar direto de pessoas descohecidas; após o relacionamento amigável  esse rechaço geralmente desaparece.

Começando a andar

Marina conta sua história e de Paulo, seu filho:

Paulo ainda não andava com um ano e três meses. Alguns pediatras aconselhavam esperar, tudo estaria bem. Mas não era assim. Já foi difícil se sentar, só conseguiu com oito meses. Antes tentava se sentar mas caía para frente. Também não tinha força para apoiar o tronco . Finalmente se sentou, sentou rindo, muito, como se fosse uma brincadeira. Ele ria muito, era simpático. Ficava eufórico quando eu chegava em casa, se estivesse na sua cama começava a bater as pernas com uma grande alegria,atirando os braços para mim,contente de me encontrar.

Era alegre mas tinha medo. Queria mesmo andar e eu percebia como tentava se apoiar em qualquer coisa, algum móvel, alguma parede. Ficava claro o medo mas não desistia. Depois se cansava, parava e se deixava cair sentado no chão.

Finalmente encontramos, eu e o pai, um lugar para ajudá-lo a andar, mesmo sem saber o que havia com ele.
Começou a fazer fisioterapia. Nem eu nem o pai assistíamos as sessões. Paulo ficava no segundo andar e eu no térreo. Ele gritava e chorava, eu imaginava que fosse por causa dos exercícios, ou porque estava só com alguém que não conhecia. Eu ouvia. Ele chorava lá em cima e eu chorava lá embaixo. Subi e vi que Paulo estava sentado em uma carteira de escola para crianças, uma mesa cortada em uma meia-lua para ele não sair. Falei que ele não faria nada assim e finalmente o fisioterapeuta encontrou uma forma menos tensa. Também me permitiu ficar lá em cima com Paulo para se tranqüilizar.

O tratamento prosseguia, houve melhoras. Chegaram as férias, as minhas. A do fisioterapeuta também. Ele me sugeriu que exercitasse. Lá fomos eu e Paulo à praia para andar na areia, agora já estava conseguindo. Pensei que seria muito bom, um verdadeiro passeio, o sol não muito forte, o vento da manhã.

Paulo andava, segurando minha mão. Depois de algum tempo começou a dar sinais de cansaço. Eu parava um pouco e depois recomeçava. Passou a segurar e puxar minha roupa mostrando claramente que queria parar de andar. Insisti ainda um pouco mas uma luz felizmente me obrigou a usar a razão e o coloquei no meu colo. Braços e pernas se engancharam tão perfeitamente no meu corpo , o peso era quase nada . Virei para seu rosto e o vi completamente entregue e adormecido.

Só assim pude perceber o exagero. Tenho a impressão de que os pais, diante de filhos com dificuldades, querem resolver tudo, curar imediatamente. Talvez seja um desafio interno, uma vontade enorme de transformar os limites. Ou uma tentativa de compensar a fragilidade dos filhos.

Nota: A maioria dos meninos com a SXF, principalmente na infância, têm dificuldade para andar, subir escadas e outras atividades, devido a uma hipotonia muscular.